jogada global de Lula - Parte 2
Como o presidente do Brasil assumiu o papel de "o cara" e entrou em conflito com os EUA ao mediar a crise com o Irã
Luiza Villaméa
Classificada pelo presidente russo, Dmitri Medvedev, como “a última oportunidade” do Irã antes da adoção de medidas retaliatórias, a iniciativa brasileira contava também com o suporte dos Estados Unidos. Em mensagem despachada três semanas antes para o presidente brasileiro, Obama chegou a incentivar o uso do peso das relações comerciais do Brasil com o Irã para fazer o regime de Ahmadinejad negociar. Ainda assim, mal o sinal verde foi disparado do Golfo Pérsico, a secretária americana de Estado, Hillary Clinton, que já havia chamado Lula de ingênuo, torpedeou os resultados obtidos. Em nova versão, Hillary qualificou os esforços do Brasil e da Turquia em negociar com o Irã como “sinceros”, mas avisou que continuaria a “convocar a comunidade internacional em prol de uma resolução com sanções duras” ao Irã.
O argumento americano é de que, de outubro para cá, o Irã teria aumentado o seu estoque de urânio, o que tornaria a quantidade acertada no acordo insuficiente para impedir que o país continue um programa com fins militares. Desta forma, um dia depois de o Brasil e a Turquia celebrarem o acordo com o Irã, os Estados Unidos apresentaram um rascunho de resolução durante reunião do Conselho de Segurança da ONU, em Nova York. A proposta, que deve ser votada no mês que vem, prevê, já como reflexo do acordo conseguido por Lula, sanções menos rígidas do que pretendiam os americanos. Os EUA temiam os vetos da Rússia e da China. Por enquanto, dos 15 países com assento permanente ou rotativo no Conselho, apenas Brasil, Turquia e Líbano são contra as sanções.
EMBATE
Hillary Clinton chamou a diplomacia brasileira de ingênua
e pediu “sanções duras” contra o Irã
A embaixadora brasileira nas Nações Unidas, Maria Luiza Viotti, abandonou a reunião 40 minutos depois de seu início. “O Brasil não vai participar neste momento porque sentimos que existe uma nova situação. Houve um acordo muito importante. O momento é de diplomacia”, disse a embaixadora. A reação de Maria Luiza foi combinada com o Itamaraty. Em telefonema à embaixadora, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, afirmou que a representação brasileira no Conselho não poderia compactuar com a decisão americana. Em represália, ela deveria deixar o encontro, caso fosse confirmado o pedido de novas sanções contra o Irã.
Quase na mesma hora em que a embaixadora abandonava a reunião em Nova York, em Brasília, Amorim afirmava à imprensa que os países “não colocaram na balança as coisas que Lula falou.” Em seguida, Amorim anunciou o envio da carta, redigida a quatro mãos com o governo turco, aos membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas, defendendo o acordo. Especialista em política nuclear, o físico Luiz Pinguelli Rosa acredita que o Brasil deve continuar a defender a ideia de uma solução negociada com o Irã. “O jogo ainda não terminou”, diz Pinguelli Rosa, que é diretor da Coppe, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Essa também pode ser uma oportunidade para discutir o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares em sua plenitude.” Firmado em 1968, o tratado prevê em seu sexto artigo o estabelecimento de planos de redução de armamentos nucleares. “As potências nucleares, signatárias do tratado, nunca fizeram nada neste sentido.” O físico lembra também que Israel, arqui-inimigo do Irã, já tem a bomba nuclear, jamais assinou o tratado e não provoca o mesmo tipo de reação no Ocidente. “Nada indica que, se houver novas sanções econômicas, o Irã vá recuar”, diz Pinguelli Rosa. “Nada também impede que, isolado, o Irã faça a bomba. O isolamento, pelo contrário, pode empurrá-lo nesse sentido.”
A imprensa mundial, apoiando ou batendo na posição do Brasil, acabou dando elevada dimensão ao acordo com o Irã. Editoriais mais conservadores, como o do “Miami Herald”, classificaram a atuação de Lula como “megalomania diplomática”, enquanto outros, como o do espanhol “El País”, saudaram o “gol brasileiro”. Já a diplomacia de Obama foi considerada nada mais que “boboca” pelo “Herald Tribune” e “fadada ao fracasso” pelo “The Wall Street Journal”.
Por enquanto, a única tentativa negociada para deter as possíveis pretensões atômicas do regime de Ahmadinejad foi a mediada por Lula, um marco na trajetória usualmente tímida da política externa do Brasil. Pontos altos da diplomacia nacional ainda remontavam a 1947, quando o então chefe da delegação brasileira na ONU, Oswaldo Aranha, presidiu a sessão que aprovou a partilha da Palestina, com a futura criação do Estado de Israel em 1948. Da década de 1960 até o começo dos anos 2000, as relações internacionais brasileiras estiveram, quase sempre, atreladas aos Estados Unidos. Em junho de 1964, o então ministro de Relações Exteriores do Brasil, Juracy Magalhães, chegou a proferir uma frase sintomática: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil.” Segundo o historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira, autor do livro “As Relações Perigosas: Brasil-Estados Unidos (de Collor a Lula, 1990-2004)”, a política externa regrediu ainda mais nos oito anos de FHC.
O apogeu dessa postura subserviente se revelou de modo contundente, segundo Moniz Bandeira, num aeroporto dos EUA. “Em 31 de janeiro de 2002, Celso Lafer, ministro das Relações Exteriores do Brasil, sujeitou-se a tirar os sapatos e ficar descalço, a fim de ser revistado por seguranças do aeroporto, ao desembarcar em Miami”, lembrou o historiador. Mas o cenário mudou: hoje, graças à política exterior implementada pelo governo Lula, o País promoveu a integração regional, privilegiou as alianças com o sul do mundo e diversificou o comércio exterior. Entrou em rota de colisão com Obama, mas firmou o nome do Brasil no mundo, em uma condição de prestígio e de respeito.
REAÇÃO
A embaixadora do Brasil abandona a reunião da ONU
Em busca de bons negócios
Por Milton Gamez, enviado especial a Istambul
Negócios, muitos negócios. Esta é a consequência prática da união entre Brasil e Turquia na busca de uma solução diplomática e pacífica para a questão nuclear do Irã. O dinheiro, que sempre segue a trilha do diálogo político, já se faz sentir nas ruas de Istambul e nas mesas de negociação entre empresários dos dois países. Turistas brasileiros, seduzidos pelo novo voo direto São Paulo-Istambul da Turkish Airlines, estão em toda parte: nos corredores lotados do Grande Bazar, com suas quatro mil lojinhas, na fabulosa Mesquita Azul, no restaurante Gazebo do elegante hotel Çiragan Palace Kempinski, na margem europeia do estreito de Bósforo. Na televisão turca e nos jornais, imagens do presidente Lula e do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, acompanhavam as reportagens sobre a ida de ambos a Teerã, na semana passada. Eles só perdem, em popularidade, para os jogadores brasileiros de futebol que esquentam o campeonato turco, como André Santos, Alex Souza, Deivid e Cristian, do Fenerbahçe.
Nesta semana, os turcos fazem sua “invasão otomana” em São Paulo. Na Expo Turquia, representantes de 150 empresas desembarcam em busca de parcerias, joint ventures e contratos de exportação e importação. “Queremos estreitar as relações ainda mais. Para a Turquia, o Brasil é a porta da América do Sul e nós podemos abrir mercados asiáticos e orientais e para produtos brasileiros”, disse à Istoé o industrial Mehmet Aykut Eken, presidente do Conselho de Negócios Turco-Brasileiros. O comércio entre os dois países não ultrapassa US$ 1,8 bilhão por ano, em uma balança favorável ao Brasil. “Podemos cooperar em muitas áreas. Não só em autopeças e alimentos, mas também em energia e construção civil”, diz ele. “As similaridades entre os dois países devem ajudar os novos negócios”, acrescenta Murat Yalçintas, presidente da Câmara de Comércio de Istambul. O primeiro-ministro Recep Tayyp Erdogan, que fechou o acordo nuclear com Lula em Teerã, virá à feira e atenderá, no Rio de Janeiro, a terceira reunião da Aliança das Civilizações, iniciativa da Espanha e da Turquia. Amigos, amigos, negócios também.
Colaboraram: Adriana Nicacio, Hugo Marques e Sérgio Pardellas
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