2010 é um ano para ficar na memória
Após a divulgação de vídeos com políticos embolsando dinheiro, Brasília assistiu à inédita prisão de um governador, à renúncia do vice e a um governo tampão marcado pelo caos em áreas vitais, como saúde e segurança. Por tudo isso, o ano do cinquentenário não pode ser esquecido
Juliana Boechat
Publicação: 31/12/2010 07:52 Atualização:
O ano que termina hoje ficará para sempre marcado na história do Distrito Federal. Justamente quando a capital da República comemoraria seu cinquentenário, os brasilienses assistiram a uma sucessão de escândalos que mancharam a imagem da cidade e afetou diretamente a vida dos cidadãos. Na verdade, 2010 começou 35 dias antes. Mais precisamente em 27 de novembro do ano anterior, quando a Polícia Federal e o Ministério Público deflagraram a Operação Caixa de Pandora, que revelou um organizado esquema de corrupção cristalizado por toda a estrutura de poder. Diversos vídeos mostraram autoridades recebendo maços de dinheiro e escondendo a suposta propina em bolsas, na cueca e até nas meias.
No início de 2010, o governador José Roberto Arruda foi preso por dois meses e cassado — foi a primeira vez que um chefe de Estado foi detido no exercício do cargo em todo o país. O vice, Paulo Octávio, renunciou ao cargo e houve a eleição indireta de Rogério Rosso para um mandato-tampão. Dois deputados distritais renunciaram para escapar da degola e um terceiro — a deputada Eurides Brito — acabou cassada por seus pares. A metástase institucional respingou no próprio Ministério Público, que viu ser afastado por 120 dias o ex-procurador-geral de Justiça Leonardo Bandarra, também acusado de corrupção.
Em meio a essa sucessão de escândalos, o brasiliense enfrentou uma conturbada eleição, dominada não pelo debate de propostas, mas pelo embate jurídico em torno da Lei da Ficha Limpa, que acabou por tirar da política o ex-governador Joaquim Roriz. Impedido de disputar, mas na expectativa de se manter no poder, ele lançou a mulher, Weslian, como candidata ao Buriti. As gafes cometidas pela ex-primeira-dama em debates e entrevistas deram ares de folclore à política de uma cidade já envergonhada.
A crise que fez ruir todo um governo afetou diretamente a vida de cada morador do DF. O governo paralisou centenas de obras, algumas no coração da cidade. Áreas essenciais mergulharam no caos. Na saúde, faltam médicos, leitos de UTI e até esparadrapos nos hospitais. O centro cirúrgico do Hospital Regional de Ceilândia foi interditado por causa de piolhos de pombo. Na segurança, o crack avançou assustadoramente, tomando conta de áreas encravadas no centro da capital. E o ano termina com o Distrito Federal tomado pelo mato alto e pelo lixo, símbolos do abandono da cinquentenária Brasília.
Apesar de tudo, 2010 não é um ano para ser esquecido. Na avaliação de especialistas ouvidos pelo Correio, Brasília deve buscar amadurecer com a experiência vivida. Para a cientista política Lucia Avelar, os escândalos derrubaram a auto-estima da população, mas também serviram para mobilizar a sociedade. “O brasiliense ficou de cabeça baixa. A população fica mal vista e reafirma a imagem de que ali é o espaço da corrupção”, afirma. Por isso, Lucia defende a participação popular para o fim dos escândalos políticos na capital federal. “Acredito na força da sociedade quando ela se manifesta.”
Na avaliação do professor da UnB David Fleischer, 2010 servirá de exemplo. “O brasiliense não deveria se esquecer deste ano, mas se lembrar para evitar repetições dos mesmos erros. Tem de tentar não eleger ladrões e evitar cair no papo de promessas demagógicas”, afirma. O cientista político Murillo de Aragão também vê um saldo positivo em toda essa crise política. “Foi um ano doloroso por conta de tudo o que aconteceu, mas também foi um ano em que parte dos desvios foram neutralizados. Teve esse lado positivo, com ganhos no aperfeiçoamento da fiscalização. Foi o ano em que se descobriu os esquemas ocorridos nos anos anteriores. Não é um ano para ser esquecido. Agora, a população vai levar tempo para se recuperar e a voltar a confiar na política brasiliense.”
Na avaliação do professor Octaciano Nogueira, a crise vivida em 2010 ajudará Brasília a avançar no processo democrático. “Pela primeira vez um governador foi preso. É um avanço no funcionamento das instituições porque gera a diminuição da taxa de impunidade ou, pelo menos, da percepção da impunidade. É um aviso de que as instituições democráticas estão funcionando e uma advertência para os corruptos”, defende.
O também cientista político João Paulo Peixoto avalia que a cidade ainda não conseguiu se recuperar da crise. “Infelizmente, é isso que vai marcar o ano. Wilson Lima e Rogério Rosso estiveram longe de cumprir minimamente o seu papel de administradores temporários do GDF, o que prejudicou muito a condução e a implementação das políticas públicas que estavam em andamento no GDF. É só olhar a cidade hoje. Ela nunca esteve tão suja e tão descuidada.”
Como a crise afetou a minha vida
Adeilton Lima, 45 anos, ator
Há 23 anos, o ator Adeilton Lima (foto) convive diariamente com o descaso da cultura no Distrito Federal. Os espaços culturais estão abandonados, os artistas locais não contam com incentivo e as manifestações independentes, quando muito, recebem patrocínios do governo federal. “A grande metáfora para este descaso da cidade é o tamanho do mato e a quantidade de lixo nas ruas. A cidade está abandonada”, protesta. A crise afetou diretamente a área cultural. Os repasses do Fundo de Apoio à Cultura (FAC) foram suspensos e muitos projetos acabaram abandonados por falta de verba. “Muita gente foi prejudicada”, diz Adeilton. Na avaliação do ator, para reerguer a cultura de Brasília é necessário incrementar as condições básicas da população com educação, saúde e segurança. “É tudo interligado e isso reflete diretamente na cultura. As pessoas não vão ao cinema se o sistema de transporte não funciona, se o local não é seguro”, diz.
Raul Cardoso, 23 anos, estudante
O coordenador-geral do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UnB, Raul Cardoso, 23 anos , participou ativamente do movimento contra a corrupção no Distrito Federal. Logo após a deflagração do esquema de corrupção pela Polícia Federal, ele reuniu o movimento estudantil e saiu às ruas. “Quando começaram a surgir os casos, na primeira semana, decidimos não deixar isso passar batido”, lembra. Aos poucos, o grupo se uniu e chamou a atenção de Brasília. Ocuparam as duas sedes da Câmara Legislativa, fizeram apitaços pela cidade, manifestações bem humoradas e enfrentaram repressões da Polícia Militar. “Tivemos vitórias concretas, como o afastamento do Arruda. É um recado importante para a sociedade: de que a união consegue o que quer”, explica. Para ele, o ciclo ainda não se completou. Ano que vem, pretendem trabalhar com a sociedade para repensar o Distrito Federal. “Brasília não pode se mobilizar só em época de crise política. Com a união, você divide as ansiedades e inquietações. Acima de tudo, foi um aprendizado coletivo.”
Oliveira Fernandes, 74 anos, agricultor
Há 50 anos, o agricultor Oliveira Fernandes, 74, instalou-se em uma área afastada da capital federal. Com o passar dos anos, acompanhou o crescimento de Águas Claras, o desenvolvimento de Vicente Pires e as obras de ampliação da EPTG, hoje denominada Linha Verde. Tanta mudança na região prejudicou o estilo de vida de Oliveira. “Estão aterrando a minha casa. Um córrego de água se forma no meio da passarela (de pedestres) e cai dentro da chácara, trazendo todo o barro da obra”, reclama. Na entrada da casa de Oliveira, há restos de madeira, concreto e piche. O descaso se repete ao longo de toda a EPTG, que foi entregue inacabada à população — a obra era uma das prioridades do ex-governador Arruda e foi lançada meses antes de estourar o escândalo da Caixa de Pandora. O corredor de transporte que estava previsto não entrou em operação e as paradas de ônibus já estão pichadas. A sinalização é deficiente em muitos pontos.
ANÁLISE DA NOTÍCIA
De todos os brasilienses para...
>> Ana Dubeux
São muitos os destinatários que poderiam receber tais notícias de Brasília. Também são muitos os remetentes. Faço minhas, então, as palavras dos quase 2 milhões de brasilienses, que esperam estar de fato iniciando um novo ano. Que 2011 tenha a cara festiva e alegre que a comemoração dos 50 anos merecia ter tido. Que 2011 seja a derrocada de uma corja que se apossou da nossa capital para se apropriar de sua riqueza, de seus impostos, do resultado de seu consumo. Que em 2011 a esperança imponha uma dura derrota ao pessimismo e ao descrédito na política, marcas registradas pós-Operação Pandora que ainda hoje perduram.
Brasília virou o ano com a sujeira e o mato espalhados por suas ruas num triste retrato do descaso a que somos submetidos desde a queda – bem-vinda – do governo Arruda por corrupção. Poderia ser diferente? Sim, mas o mandato tampão de Rogério Rosso não teve exatamente a marca do resgate de cidadania. Terminou tristemente com denúncias de shows superfaturados totalmente dispensáveis – inclusive para a biografia de Rosso. Aos senhores governantes e autoridades de Brasília nos últimos quatro anos, podemos dizer simplesmente que deixaram um legado de abandono jamais visto na cidade planejada para ser exemplo em todos os sentidos. Se tinham um plano de sucateamento geral da capital, podem se orgulhar, pois o cumpriram com maestria. Já foram tarde. E tenho dito.
Eis que amanhã seguiremos sob nova direção. Difícil estarmos em mãos piores do que já estivemos. Logo, acredito que eu e toda a população do Distrito Federal já estamos perigosamente comemorando de véspera. O mandato Agnelo, se não for muito ruim, já terá sido melhor. Mas, é verdade, esperamos muito mais. Aguardamos limpeza, segurança, educação e saúde de qualidade. Depositamos todas as expectativas, as melhores, num governo mais justo, mais capaz e, por favor, honesto, decente, sem roubalheira e corrupção.
Ao longo dos últimos meses, aqui neste espaço, pedi muito que Brasília fosse varrida, lavada e enxaguada. Na verdade, precisávamos de um dilúvio para tirar toda a sujeira depositada durante tantos anos de desmandos. Apenas algumas espécies deveriam ser resguardadas: os cidadãos honestos, com boas ideias e projetos, sem a ganância que sempre nos impõe castigos imensuráveis. Espero que nossas escolhas nos honrem até 2014.
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